Eu odeio esquecer os sapatos. Normalmente eu percebo quando estou entrando na reunião, ou então no meio dela. Olho pra baixo e vejo as meias brancas. Em geral ninguém percebe, mas de um jeito ou de outro eu morro de vergonha, fico o tempo todo me preocupando com isso.
Sempre deixo o carro no mesmo lugar. É um edifício-garagem, desses que não têm elevador, somente aquelas rampas em espiral, sei lá quantos andares, talvez dez, e vários manobristas ficam ali no térreo esperando. Não me recordo quando e porque fiz esse acordo que permite que eu mesmo desça com meu carro e o estacione naquela área menor, cercada, do 1° subsolo, ali à direita do final da rampa. Outro dia mesmo estacionei o Galaxie lá, estava chegando não sei de onde e tinha mais alguém comigo. Quando eu entrei, aquela passagem estreita, não pude evitar raspar o paralamas traseiro direito e fiquei muito puto com isso e depois fui olhar o estrago e vi bem a textura de parede, aquelas faixas preta e verde típicas de coluna de prédio, dos prédios que não têm faixa amarela, têm só a verde, coisa que, aliás, eu nunca tinha visto antes.
Quando fui conversar com o homem que estava longe, tive que ir andando ao longo daquela cerca, a grama era bem verde e o sol já se punha ao fundo, era uma bonita paisagem. Não sei se a expressão dele o fazia parecer sereno ou simplesmente impassível, lembro-me que perguntei como estava meu avô, ele era o único que poderia saber, ou pelo menos achei isso na hora, e recebi a resposta de uma maneira estranha, porque ele disse que estava bem, mas usou outro nome para referir-se a ele, e quando fiz aquela cara de ‘não entendi nada’ ele logo explicou que o nome verdadeiro dele era esse. Eu só fiquei olhando, dizer o quê?
Eu me arrependi do fundo da alma por ter saído com o Galaxie, tão novinho, tão bonito, tão azul calcinha, e aquele ônibus que transformou a traseira toda em sucata. Eu chorei; foi de raiva, acho. Eu não precisava, eu não precisava, eu não precisava ter saído com o Galaxie, e agora olhava o carro, o porta-malas tinha quase sumido. Acho que era raiva de mim mesmo.
Uma vez eu destruí um carro tão completamente que nem sei como saí inteiro do acidente. Lembro de ver pedaços do carro ficando pela avenida enquanto capotava várias vezes e depois queimava e virava uma bola de fogo. Eu vi o carro queimar até o fim depois que saí dele. Em vez de ficar feliz por ter escapado eu estava ali bravo por perder o carro.
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A vida vai tomando rumos não exatamente esperados e planejados, e num momento percebemos que deixamos de encontrar pessoas que até pouco tempo atrás faziam parte da “rotina” de nossos fins de semana. E deve ser um bom sinal, às vezes, deve querer dizer que estamos acompanhando essa troca que não para. Tem horas na vida em que sou um aeroporto e vejo as pessoas passarem, em outras horas sou o avião e passo por algumas, levo outras comigo.
Eu estava pensando nisso tudo quando estava no aeroporto mesmo. No Santos Dumont. Toda vez que vou ao Santos Dumont fico com saudade daquela arquitetura do prédio principal de Congonhas. Santos Dumont tem lá sua graça, mas Congonhas tem mais charme.
Charme. É isso. Eu nunca falei pra você sobre charme, né? Charme é tudo (o único pequeno pecado do charme é que a sonoridade da palavra não é a ideal. Charme, a palavra, devia ser nome de bicho. Um bichinho de estimação bem bonitinho. Você poderia dizer ‘levei meu charme ao veterinário ontem’, ‘meu charme toma banho toda sexta’, ‘meu charme dorme comigo na cama’, e… bem, dá pra imaginação voar nisso. Ah, até aí, sexo também é ruim de sonoridade. Então tudo bem). Mas eu estava falando é do significado, não da palavra. Charme é tudo, sim. E se você não entendeu e discordou veementemente disso… será que pode ser um sinal de que você não tem nenhum? Ou não sabe o que é?
Aquela coisa que Bukowski fala sobre estilo, eu jamais teria traduzido assim tão literalmente. Claro, ia ter que ser corajoso e ter saco pra ouvir fanáticos e yuppies e eruditos reclamando, mas eu teria traduzido style por charme. Fácil. Style, assim, em inglês, é uma palavra muito mais curta e com mais significado que estilo. Pensa bem.
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O sujeito me disse que meu nome também não era esse que eu uso.
O carro, aquele que pegou fogo e foi se despedaçando, aquilo foi na Lexinton. Pelo menos se explica a explosão: a octanagem da gasolina gringa.
Eu entrei na sala e o vi sentado naquela poltrona de vinte anos atrás, pernas cruzadas, calça e camisa social. Ele animado, até. E todos conversavam com ele. Mas se entreolhavam, todos. Nos entreolhávamos. Todos sabiam que ele era nada mais que um homem morto agora, um fantasma do passado. Só não contávamos tudo na hora para não magoá-lo.
Eu tenho dois apartamentos. Os dois são grandes, mas vivem cheios de gente. Muitas vezes já me peguei transando com alguma mulher num quarto e de repente entra alguém. Entra assim como se não fosse nada ir entrando sem bater e ficar lá olhando.
É… sonhos são mesmo muito estranhos, né?
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Quando eu olhei de novo para o relógio e para o painel do aeroporto vi que já estava na hora. Já fazia um tempo que eu não passava por uma situação dessas.
Milla apareceu na porta do desembarque e me procurou. Eu estava sorrindo, seguindo os olhos dela procurarem. Sorriu também.
Ah, garota, de novo, você, mais uma cena dessas que podia ser o fim do filme com a câmera afastando em plongè vertical você correndo eu esperando você largando as malas e correndo eu abrindo os braços slow motion você pulando eu rindo de você tão garota e recebendo o abraço e girando pra absorver o impacto e girando mais porque ia ficar muito cinematograficamente.
“Eu fiquei com saudade, Sé”. Eu só olhei pra ela. Estava séria, dramática. “Ficou? Que bom”. E então eu ri ainda mais. “Fala que você ficou também, Sé”, ela disse esticando as sílabas, fazendo biquinho. Eu não disse. Claro que eu não ia dizer, você já me conhece. Mas dessa vez ela percebeu, ela também já me conhece demais. Foram seis meses. É, eu estava com uma puta saudade. Ponto pra você, garota.