capítulo 10: VIAJANDO

Publicado: 3 abril 2011 em Uma História Tóxica

Eu odeio esquecer os sapatos. Normalmente eu percebo quando estou entrando na reunião, ou então no meio dela. Olho pra baixo e vejo as meias brancas. Em geral ninguém percebe, mas de um jeito ou de outro eu morro de vergonha, fico o tempo todo me preocupando com isso.

Sempre deixo o carro no mesmo lugar. É um edifício-garagem, desses que não têm elevador, somente aquelas rampas em espiral, sei lá quantos andares, talvez dez, e vários manobristas ficam ali no térreo esperando. Não me recordo quando e porque fiz esse acordo que permite que eu mesmo desça com meu carro e o estacione naquela área menor, cercada, do 1° subsolo, ali à direita do final da rampa. Outro dia mesmo estacionei o Galaxie lá, estava chegando não sei de onde e tinha mais alguém comigo. Quando eu entrei, aquela passagem estreita, não pude evitar raspar o paralamas traseiro direito e fiquei muito puto com isso e depois fui olhar o estrago e vi bem a textura de parede, aquelas faixas preta e verde típicas de coluna de prédio, dos prédios que não têm faixa amarela, têm só a verde, coisa que, aliás, eu nunca tinha visto antes.

Quando fui conversar com o homem que estava longe, tive que ir andando ao longo daquela cerca, a grama era bem verde e o sol já se punha ao fundo, era uma bonita paisagem. Não sei se a expressão dele o fazia parecer sereno ou simplesmente impassível, lembro-me que perguntei como estava meu avô, ele era o único que poderia saber, ou pelo menos achei isso na hora, e recebi a resposta de uma maneira estranha, porque ele disse que estava bem, mas usou outro nome para referir-se a ele, e quando fiz aquela cara de ‘não entendi nada’ ele logo explicou que o nome verdadeiro dele era esse. Eu só fiquei olhando, dizer o quê?

Eu me arrependi do fundo da alma por ter saído com o Galaxie, tão novinho, tão bonito, tão azul calcinha, e aquele ônibus que transformou a traseira toda em sucata. Eu chorei; foi de raiva, acho. Eu não precisava, eu não precisava, eu não precisava ter saído com o Galaxie, e agora olhava o carro, o porta-malas tinha quase sumido. Acho que era raiva de mim mesmo.

Uma vez eu destruí um carro tão completamente que nem sei como saí inteiro do acidente. Lembro de ver pedaços do carro ficando pela avenida enquanto capotava várias vezes e depois queimava e virava uma bola de fogo. Eu vi o carro queimar até o fim depois que saí dele. Em vez de ficar feliz por ter escapado eu estava ali bravo por perder o carro.

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A vida vai tomando rumos não exatamente esperados e planejados, e num momento percebemos que deixamos de encontrar pessoas que até pouco tempo atrás faziam parte da “rotina” de nossos fins de semana. E deve ser um bom sinal, às vezes, deve querer dizer que estamos acompanhando essa troca que não para. Tem horas na vida em que sou um aeroporto e vejo as pessoas passarem, em outras horas sou o avião e passo por algumas, levo outras  comigo.

Eu estava pensando nisso tudo quando estava no aeroporto mesmo. No Santos Dumont. Toda vez que vou ao Santos Dumont fico com saudade daquela arquitetura do prédio principal de Congonhas. Santos Dumont tem lá sua graça, mas Congonhas tem mais charme.

Charme. É isso. Eu nunca falei pra você sobre charme, né? Charme é tudo (o único pequeno pecado do charme é que a sonoridade da palavra não é a ideal. Charme, a palavra, devia ser nome de bicho. Um bichinho de estimação bem bonitinho. Você poderia dizer ‘levei meu charme ao veterinário ontem’, ‘meu charme toma banho toda sexta’, ‘meu charme dorme comigo na cama’, e… bem, dá pra imaginação voar nisso. Ah, até aí, sexo também é ruim de sonoridade. Então tudo bem). Mas eu estava falando é do significado, não da palavra. Charme é tudo, sim. E se você não entendeu e discordou veementemente disso… será que pode ser um sinal de que você não tem nenhum? Ou não sabe o que é?

Aquela coisa que Bukowski fala sobre estilo, eu jamais teria traduzido assim tão literalmente. Claro, ia ter que ser corajoso e ter saco pra ouvir fanáticos e yuppies e eruditos reclamando, mas eu teria traduzido style por charme. Fácil. Style, assim, em inglês, é uma palavra muito mais curta e com mais significado que estilo. Pensa bem.

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O sujeito me disse que meu nome também não era esse que eu uso.

O carro, aquele que pegou fogo e foi se despedaçando, aquilo foi na Lexinton. Pelo menos se explica a explosão: a octanagem da gasolina gringa.

Eu entrei na sala e o vi sentado naquela poltrona de vinte anos atrás, pernas cruzadas, calça e camisa social. Ele animado, até. E todos conversavam com ele. Mas se entreolhavam, todos. Nos entreolhávamos. Todos sabiam que ele era nada mais que um homem morto agora, um fantasma do passado. Só não contávamos tudo na hora para não magoá-lo.

Eu tenho dois apartamentos. Os dois são grandes, mas vivem cheios de gente. Muitas vezes já me peguei transando com alguma mulher num quarto e de repente entra alguém. Entra assim como se não fosse nada ir entrando sem bater e ficar lá olhando.

É… sonhos são mesmo muito estranhos, né?

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Quando eu olhei de novo para o relógio e para o painel do aeroporto vi que já estava na hora. Já fazia um tempo que eu não passava por uma situação dessas.

Milla apareceu na porta do desembarque e me procurou. Eu estava sorrindo, seguindo os olhos dela procurarem. Sorriu também.

Ah, garota, de novo, você, mais uma cena dessas que podia ser o fim do filme com a câmera afastando em plongè vertical você correndo eu esperando você largando as malas e correndo eu abrindo os braços slow motion você pulando eu rindo de você tão garota e recebendo o abraço e girando pra absorver o impacto e girando mais porque ia ficar muito cinematograficamente.

“Eu fiquei com saudade, Sé”.  Eu só olhei pra ela. Estava séria, dramática. “Ficou? Que bom”. E então eu ri ainda mais. “Fala que você ficou também, Sé”, ela disse esticando as sílabas, fazendo biquinho. Eu não disse. Claro que eu não ia dizer, você já me conhece. Mas dessa vez ela percebeu, ela também já me conhece demais. Foram seis meses. É, eu estava com uma puta saudade. Ponto pra você, garota.

 

Na sexta à tarde ela arrumou as malas, eu nem estava em casa. Na hora em que estava saindo os olhos dela tinham lágrimas. E daí, qual a novidade? A novidade é que os meus também estavam molhados. Porra.

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Não estou dizendo que a mulher vá perder o medo de atravessar a floresta escura, mas pode ser que tudo que ela queira ouvir seja um “vem comigo, vou te levar, vamos atravessar a floresta” decidido, olhando nos olhos.

A diferença entre o ”isso é nojento, eu não faria isso nunca” e o ”nossa, humm, foi legal, sabe que eu achava que nunca experimentaria isso, mas gostei” é a maneira como foi lançada a ideia. A segurança. A embalagem. Como é que você vende o seu peixe? Você tira as escamas? Limpa direitinho? Embrulha no jornal ou numa sacolinha ecológica bonitinha?

Nada é proibido, essa é a atração de hoje.

A mulher vai te olhar como quem diz fala você, que é o macho da relação, mas no fundo ela já sabe o que quer, todo mundo sabe, não sabe? Ela diz isso e fica esperando você dizer o aquilo certo. É aí é que pega. É aí que você se perde numa palavra, trai tudo aquilo que tinha construído com tanto cuidado, com uma palavrinha: princesa.

Princesa não! Princesa não dá. Nenhuma mulher vai aguentar isso. Bom, nenhuma mulher entre as que eu ache interessantes aguentaria isso. Eu chamo a Lana de princesa… ela até já sabe, me ouve chamar “princesa” e vem abanando o rabo. Mas uma mulher, por favor, não.

E não foi uma nem duas vezes que eu confirmei isso. Outro dia mesmo uma amiga me contou sobre um encontro. Até contou uns detalhes – eu sempre pergunto. Contou que a noite foi legal, que o sexo foi bom, bom. No final fez aquela carinha de decepção e fechou: “De manhã ele me perguntou o que é que a princesa queria de café da manhã”. Eu ri alto, ela me fuzilou com os olhos. Eu já tinha avisado. Agora aconteceu mesmo com ela. Se o sujeito não sabe o que dizer, que fique mudo, olhe nos olhos, passe a mão nos cabelos dela… é, em algum momento a mulher vai perceber que ele é tão eloquente quanto uma ostra, mas até lá ele vai ganhando uma sobrevida.

Sempre existe um gatilho mais rápido (acho que a personagem do Glenn Ford dizia isso no The fastest gun alive), sempre existe alguma coisa ainda pior: marido e mulher que tratam um ao outro como “mãe” e “pai”, eis aí algo pior que a princesa, um verdadeiro desvio de comportamento digno de altos estudos. Baixos.

Então. Chamar de “princesa” é a autotraição do caminhoneiro. “Querida” também pega mal. Só pra constar.

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Para constar, requereu que fosse registrado: “que jamais chamou uma mulher de princesa; que para cada poema piegas escreveu pelo menos três eróticos; que já brochou, mas ao que sabe, nunca fez uma mulher brochar; que admite que possam existir coisas que não saiba”. Nada mais disse e nem lhe foi perguntado.

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Então. Foi no sábado à tarde que eu resolvi escrever pra ela. Que horas? Mais ou menos duas. Duas doses.

Garota,

Daí que você foi embora e me largou por aqui sozinho.

Já fazia um bom tempo que eu não acordava sem você nessa cama. Aliás, nessa cama eu nunca acordei sem você. Não na nossa super king size que você quis tanto.

Fiquei pensando que você é barulhenta, porque tudo está muito silencioso sem você por aqui. E olha que o caseiro já trouxe a Lana, ela está aqui comigo. Substituição de cadela?

Fiquei andando pelo apartamento nesse silêncio todo e bem… senti falta.

Olhei muito para cada objeto que você trouxe, que você sugeriu, que você quis. Lembrei das brincadeiras e dos sorrisos.

O seu pedaço do armário estava uma zona. Quem olhasse acharia mesmo que você tinha saído às pressas, levado só o que cabia na mala. O espaço onde ficava tua mala, assim, vazio, me arrepia.

Parece que você sumiu sem falar tchau e que nunca mais vai falar oi também.

É claro que teve uma hora em que entrei naquele g-mail onde estão as fotos. Fiquei olhando a cronologia delas. Uma que chamava atenção era aquela toda com a pose que eu pedi, cada detalhe, até aquele dedinho na boca e a tentativa de fazer uma carinha de ingênua.

Fala sério, ninguém que lesse isto ia entender tão bem quanto você, não? Pensei numa greve de fome. Não, não. Greve não.

Abri até aquele MSN fake com vontade de encontrar o teu fake ali, on. Nada. Eu sabia que não ia te ver tão cedo. Besteira ficar procurando. E nem vou telefonar também. Segue.

Ensinei umas coisas novas pra Lana. Umas besteiras. E consegui ensinar ela a latir sob comando. Eu sei bem como é: vai ter gente que vai criticar, vai dizer que não gosta de adestramento porque quer um cachorro e não um robozinho. Sei. Esses que reclamam geralmente são os mais adestradinhos pela sociedade. Aquela história que conversamos, sobre adestrar pessoas.

Lana já está pegando o jornal no hall e meu chinelo no quarto. Não dá pra ler o jornal depois que ela busca porque sobra pouco. E ela já estragou um pé de Havaianas. É assim mesmo. O processo de aprendizado tem mesmo que ser marcante.

Já que o projeto Milla se mandou eu decidi me dedicar ao projeto Lana.

Você vai se lembrar de mim um monte de vezes. Não vou ficar viajando nesse tema porque o Roberto Carlos já gravou isso.

Já faz mais de um ano daquela primeira noite. Nada a lamentar. Se eu tivesse que escolher entre brilhar muito e apagar antes ou brilhar pouco para durar mais, você sabe muito bem que eu ficaria com a primeira. Isso é muito Roy e Dr. Tyrrell, eu sei.

Caio me ligou, sabia que eu estava sozinho. Vou de novo à casa dele beber e ficar tirando fotos das pessoas bizarras na memória. Avisei ao Caio que ia levar a Lana, ele deu risada, achou que eu estava brincando. Claro que era sério. Quase todo dono de cachorro é sem noção, né?

É, garota. Daí que você foi embora e me largou por aqui sozinho.

Eu nem imprimi. Queria que ela lesse logo. Mandei por e-mail com SMS avisando.

Serenidade é o quanto querem, é o quanto esperam de você. Isso é uma viagem, uma confusão. Usam como exemplo de serenidade aquele jota cristo que você tanto menciona e sabe muito bem que eu não acredito que tenha sido nada mais que um homem. Ele é falado como o sujeito que dá a outra face, e esquecem-se sempre da parte que eu gosto: o quente ou o frio, o morno eu vomito. Esse cara, esse teu exemplo de serenidade expulsou os vendilhões do templo, aos gritos e chibatadas, não foi? Cuidado, então, quando fica disseminando essa ideia bonitinha morninha moderninha de serenidade.

Eu queria ter visto serenidade em George W. Bush em vez de discursar ao pé das torres com uma jaqueta da aeronáutica e declarar guerra.

E também queria ter visto reação, de muitas pessoas, em muitos momentos. Serenidade pode fazer a diferença, mas será que não faz parte do conceito de serenidade a reação violenta, agressiva, massiva? Dê-me uma montanha de calma, tranquilidade e serenidade e eu te darei um lindo jantar de pessoas simpáticas com cabelinhos aparados, roupas largas e comendo frango assado. Pudim de sobremesa. Se isso é tudo que você espera da sua vida, vá em frente, bastante calma, na paz… vá pela sombra.

Não é o que me interessa. Eu quero correr riscos. Eu serei o sujeito que levantou a voz e disse aquilo que estava contido na garganta de muitos. Não sou revolucionário e nem líder de porra nenhuma, eu só não aceito me calar. Cale-se você, se quiser, Vini.

Seja mais um dos caras que acham que a vida é apenas esse intervalo mais ou menos chato entre o banho da manhã e a próxima dose de Rivotril.

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A não ser que você viva em uma caverna e isolado da civilização, já passou por isso. Tivemos uma conversa antes. Ela disse que essa ia ser nossa primeira DR, e aí você imagina a minha cara. Eu já tinha discutido isso antes, com outras mulheres, mas cada situação é uma situação. “Eu acho que devo te apresentar da maneira que você quer ser apresentada. Só isso.”. Ela achou que era um critério razoável. Tinha um problema, mesmo assim: se um diz que quer ser apresentado como marido ou mulher, não dá pra apresentar o outro como namorado. É só uma apresentação, não podemos obrigar as outras pessoas a jogar xadrez, afinal. Decidido, namorada, namorado, fechado. E sem esconder que moramos juntos, esconder pra quê?

Foi assim que fomos para o nosso primeiro compromisso social. Nada de especial, só um pretexto para comer, beber e dar risada num sábado à noite. O apartamento do Caio também era na zona sul, resolvemos ir a pé. Eu ainda me surpreendo quando mulheres têm aquelas reações típicas de mulheres. Foi engraçado, eu ali de jeans e camiseta, pronto pra sair, e ela que não decidia a roupa, toda ansiosa, como se fosse um grande evento. Enlouqueça uma mulher: quando ela chegar vestida e perguntar se uma roupa está boa, demore pra responder. Pronto. Depois de hesitar um tempo pode responder o que quiser, ela não vai acreditar. E não vai mais sair com aquela roupa. Você nunca brincou disso? Atrasa um pouco o passeio, mas é engraçado. “Todo mundo lá é mais ou menos da minha idade. Coloca a roupa que você usaria pra ir visitar uma tia, está tudo certo!”. Carinha de brava. Brava só de fazer tipo. Quanta onda pra acabar vestindo o que eu já sabia: uma sainha curta e uma blusinha apertada, sem soutien. “Tá linda, um tesão, Milla. Um pouco com cara de vagabunda, mas qualquer coisa avenida Atlântica tá aí do lado.”. Era o tipo de brincadeira que agora ela curtia. Sorria, fazia aquele olhar safado; eu gostava e ela também.

Parei no seu olhar garota não sei muito bem o que é que está acontecendo estou gostando muito dessa intensidade da velocidade da direção do sentido principalmente de todas essas curvas e os pingos nos is.

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Um dia eu ainda vou dar um curso. Se bem que já deve ter algum tipo de personal fazendo isso. A Milla disse depois que nunca tinha reparado especialmente nessas coisas. Que já tinha reparado, claro, mas que não ficava guardando os dados para registro, que nem eu faço. Agora ela faz também, virou uma brincadeira nossa. Mulheres que vestem a roupa errada. Pra falar a verdade, mulheres que saem com a calcinha errada, esse era o nosso foco. Que não estivesse caindo bem com a roupa ou que não estivesse caindo bem com o corpo mesmo. Algumas vezes aconteciam as duas coisas. Se você começar a reparar, também vai dar risada. Observe bem quantas calcinhas erradas não estragam uma noite que prometia tanto. Uma amiga me disse que nunca reparou nisso, porém achava que cuecas brancas podiam estragar uma noite, sim. Anotei. Minha especialização é nas calcinhas.

Ela também tomou whisky naquela noite. Eu levei um Jack Daniel’s, pra variar; eu sabia que o Caio estava naquela vibe de vinhos, era melhor levar meu whisky. Devia dizer whiskey, nesse caso. Expliquei pra Milla que o Jack Daniel’s era um Tennessee e que por acaso era muito melhor que o Jim Beam, que era um Kentucky. Em casa experimentamos os dois, e ainda o Wild Turkey, outro Kentucky, mas bom. Falar sobre whisky e tomar, isso sim é que é dar aula. Principalmente com a companhia certa. Sabe, ela estava muito companhia certa, acho que cada vez mais.

Eu sou um maldito egoísta. Mas tenho certeza que gosto muito mais de mim quando estou com a Milla.

As calcinhas. Então. Nem me venha com a conversa que calcinha tem que ser é confortável. Sem essa. Calcinha confortável é pra fim de semana no sitio, não pra sair à noite. E tem mais, estamos no Rio de Janeiro. No Rio não se respira dinheiro, como em São Paulo. No Rio se respira praia, sexo, corpo saudável, bonito, um boteco no fim do dia e, sem falta, no fim de semana. Então o conforto fica pra Petrópolis e aqui a gente discute o que é que cada calcinha veio dizer. Fizemos uma listinha do que é que as calcinhas tinham vindo dizer, as das mulheres que estavam na casa do Caio. A Milla riu muito com isso, quis ficar nessa brincadeira muito tempo. Eu fiquei só constatando o quanto uma mulher de 21 pode ser cruel com as suas coleguinhas de 40. Muito cruel. Foi uma maneira dela se sentir muito melhor que todas as outras ali. Bem… as feias que me perdoem, não é isso, Vini… cius?

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“Vem cá, meu vício, chega de whisky e whiskey. O gosto que eu quero sentir agora é o teu.”. Sabe quando você diz isso, e você quer mesmo dizer isso? Então. E sabe quando você percebe que a mulher tem o mesmo tesão? Não sei quanta gente sabe como é bom e louco e cheio de possibilidades você poder dizer que aquela mulher com quem você dorme, com quem você vive, é a mulher que mais te deu tesão em toda a puta da vida. E daí, me fala, quantos homens afirmam isso com segurança, beijam essa mulher e continuam sempre com vontade desse beijo? Fazer sexo oral de ficar molhado, suado, cansado, de olhos fechados, e um se acabar na boca do outro, e depois, ainda, uma boca procurar a outra, pra beijar mais, mais um pouco. Foi assim. Não, sempre é assim.

Foi depois e no meio de um desses beijos que ela parou pra me perguntar. Tão mulher, evitando ser menina, levantou o tronco pra olhar nos meus olhos e ficar esperando a resposta.

“Me  fala uma coisa… por que você me chama de garota?”. Ah, se ela soubesse que quando ela passa… acho que eu pensei nisso quando ela perguntou, devo ter olhado pra cima, pro nada. Depois olhei bem nos olhos dela. Mostrei a língua. “Porque você é uma pirralha, por isso.”

capítulo 7: LIMITES

Publicado: 29 julho 2010 em Uma História Tóxica

Meu nome é Milla. Tenho 21 anos e todas as certezas do mundo. Já sei tudo o que gosto e tudo o que quero, menos um monte de coisas que ainda não experimentei (eu faço uma lista das coisas que eu quero ver, sentir, experimentar). Não acho que todo mundo tenha que experimentar tudo; couve-flor, por exemplo, só pode ser ruim, ninguém merece. Mas acho que existem coisas que não dá pra descartar sem provar.

Foi assim que eu comecei com ele: por curiosidade, porque queria saber mais, queria entender melhor.

Meu primeiro beijo também, era feito muito mais de curiosidade e atração pelo proibido do que qualquer outra coisa. Pouco importa qual era a minha idade, não tinha ninguém no mundo que eu queria beijar mais do que a Karen. Hoje em dia eu olho pra ela, aquela barriga de sete meses e acho tudo muito engraçado, o primeiro banho, o primeiro beijo, o primeiro toque, a primeira vez, tão primeira vez. Eu só acho engraçado, eu não sinto mais coisa nenhuma. Só isso. Não sei se eu sinto igual às outras pessoas, mas também quem é que disse que todo mundo tem que sentir igual? Não sei se eu sou mais fácil ou mais difícil de entender, e também o que interessa isso, afinal, eu não estou preocupada em ser entendida. Ao contrário, acho que eu gosto de confundir a cabeça de quem tenta me entender. É um jogo bem gostoso deixar as pessoas confusas. Pode ser que o Sérgio me entenda muito, ele nunca me deixa perceber que está tentando me compreender, então com ele acaba não dando certo o meu joguinho. Mas também é maneira essa coisa entre mim e ele, essa coisa de jogar de não jogar. Normalmente eu o deixo ir até onde ele quiser, mas eu não acho que isso tudo é por ele, acho que é por mim mesma. Tem horas em que ele chega ao limite que ele acha que é o meu limite, mas eu ainda estava pronta pra ir muito mais longe… ou pelo menos um pouco. Eu não posso contar isso senão ele vai deixar de agir naturalmente comigo, e aí vai mesmo ultrapassar o que ele considera meu limite, e nessa hora sei lá aonde a gente pode acabar indo. Melhor não. Por enquanto não.

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Quando eu fui pra Búzios com ele não era uma casa. Ele tinha alugado um veleiro e nós passamos o feriado embarcados (ele fala desse jeito, e eu acho isso esquisito). Não era nenhuma novidade pra mim estar num veleiro, nua, com um homem. A diferença é que eu já não tinha 5 anos, e que o homem não era o meu pai, apesar de ter uma idade muito próxima. Foi igualzinho com meu pai a parte dele ficar me ensinando os nomes das coisas, aqueles nomes portugueses complicados, dos tempos das grandes navegações, e depois ficar me ensinando a velejar (ele levou um livro e leu pra mim coisas do Pessoa e do Ricardo Reis que tinham tudo a ver com o mar). Eu não aprendi quase nada, nunca gostei de decorar nomes assim, cada corda tem um nome e cada corda nem pode ser chamada de corda. Mas eu ri muito, me diverti muito, foi muito bom. Eu decorei uma coisa só. Dei muita risada com isso, se fosse o meu pai em vez do Sérgio acho que teria ficado bravo por eu rir enquanto estava me ensinando. Nunca cuspa a barlavento. O Sérgio acha que esse é um dos bordões mais perfeitamente didáticos que ele já conheceu. Porque barlavento é uma palavra estranha, sotavento mais ainda; mas quando me lembro da frase, e penso que não posso cuspir a barlavento, e aí vem a explicação óbvia: porque a cuspida vai voltar em mim. Então já sei logo que barlavento é de onde vem o vento, e sotavento, por exclusão, é para onde vai o vento. Nós cansamos de brincar com isso, naquele dia, e em casa, depois, muitas vezes. Acho que por ter sido uma coisa aprendida com tanto sorriso, numa hora tão boa, eu e ele, o barulho do mar e do vento, uma música, motor desligado, acho que por isso eu não esqueci mais a definição. Bom aprender assim. Estávamos começando a ter coisas nossas, coisas que as pessoas de fora não entenderiam, e que fazíamos questão de manter e cuidar. Coisas que nos deixavam mais próximos, acho. Coisas nossas. Eu nunca tinha tido isso antes com ninguém. Também lembro da vela mestra e da genoa. Maneiro.

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Naquela época a boca mais bonita que existia no mundo era a boca da Karen. Hoje em dia eu vejo tanta menina dizendo que tem curiosidade… curiosidade! Que hipocrisia, fala sério. Todas prontas pra condenar e criticar e olhar feio quando percebem um clima entre duas mulheres. E depois chegam em casa e se tocam e pensam em sei lá qual amiga ou situação. Está afim vá lá e faça, não mata não. Aliás, com mulher nem engorda.

A Karen tinha um cabelo meio claro, encaracolado, um rostinho bem delicado, ela parecia um anjinho. Anjo não tem sexo, né? Ela não era anjo não. Sempre usava calcinha branca, de algodão, e era tão bonequinha quando a calcinha aparecia. Ela já tinha beijado dois meninos e uma menina. Eu só tinha dado selinho. Foi bom, foi legal, foi especial. Não sei se foi inesquecível, acho que não. Tenho impressão que um dia quase nem vou lembrar dela, e olha que se me dissessem isso na época eu ia brigar e chorar. Ela foi a primeira pessoa pra quem eu disse eu te amo e fiquei sem resposta. Bem feito, pra deixar de ser boca grande.

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Eu percebo bem o quanto ele quer testar a minha confiança nele, de vez em quando ouço um “confiança é tudo”, e eu nem sei se entendo bem, mas sei que, estranhamente, eu confio nele como nunca confiei em ninguém. Sabe quando a gente é criança e se joga na piscina sem saber nadar, certa de que o pai ou a mãe, que está olhando, vai segurar? É parecido com isso.

Quando ele coloca o revólver na minha cabeça ou então passa a lâmina gelada da faca pelo meu corpo, eu tenho certeza que não vai acontecer o tiro, que não vai acontecer o corte. E nem é que não dá medo, dá bastante medo sim, não tem como, mas tenho uma sensação de que, se acontecer o tiro ou o corte, mesmo assim vai dar tudo certo. Ele vai consertar tudo, manter tudo, segurar tudo. E olha que quando eu fecho os olhos eu tremo muito mas eu peço muito pra ouvir o tiro ou sentir a faca me cortar. Eu contei essa parte pra uma amiga e ela disse que eu estava ficando louca. Ficou brava, queria que eu procurasse um terapeuta.

Com certeza essa minha amiga não sabe o que é ir ao limite. Eu vou com ele a esse limite que parece ruim, trágico, mas vou também ao limite do tesão, do amor, da cumplicidade (às vezes penso que só quem chegou ao ruim é que consegue atingir o bom). Se eu tiver que morrer com um tiro na cabeça, que seja com ele, que seja nessa hora. Sabe aquela história de morrer feliz? Né?

capítulo 6: ENTRELINHAS

Publicado: 21 julho 2010 em Uma História Tóxica

Milla não precisava se mudar para cá. Acho que é bom isso ficar claro. Ela trabalhava, e não trabalhava porque precisava do dinheiro. Morava com a mãe na Lagoa, e sempre me disse que o pai tinha alguns flats em Ipanema e no Leblon. Uma vez eu fui atrás, quis conferir isso, era tudo verdade. Não que eu quisesse saber qual era o patrimônio da família, só queria saber se ela não estava mentindo. Onde eu quero chegar? Ela não era uma menina fugindo do convívio da família e muito menos aproveitando uma oportunidade para morar melhor. Isso tudo me interessava sim, por isso já tinha pensado bastante a respeito. Não estou querendo dizer que ela veio pra cá porque eu sou irresistível, mas somente que a relação estava interessante para os dois. Foi consequência, só isso.

Não pense que eu não sei que você quer muito saber o que é que uma menina de 21 anos viu num cara de 41. Bom, essa resposta já é bem mais complexa. Por enquanto vamos deixar assim: estava bom para os dois. Aliás, estava muito bom para os dois. E se você acha que ela estava sendo usada, ah, garanto que ela estava sim, muito, e nunca antes tinha gostado tanto disso. Quanto a mim, não me cabia muito ficar questionando os porquês da nossa relação, por um motivo simples: é o vício que escolhe o viciado, e não o viciado que escolhe o vício. Eu tinha sido escolhido, e por enquanto tudo estava muito bom.

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“A sua filha gostou do vaso, por que o senhor não leva pra ela?”. Eu ri, a Milla riu muito mais que eu; dei um beliscão na bunda dela – sempre era bom –, outra risada e comprei o raio do vaso. Bom, não era o primeiro que achava que ela era minha filha. Ela sempre ria muito, me tirava com essa brincadeira, mas eu não ligava, ou melhor, eu achava uma delícia estar com aquela mulher tão nova. Não, não é nada disso. Eu achava uma delícia por ela, não era pela idade dela. Caralho, eu nunca falei tanto assim de uma mulher. Não sei se isso é estar apaixonado, mas com certeza é o mais próximo disso que eu já experimentei na vida.

Nós estávamos na Gávea, era domingo, fomos na feira de antiguidades que tem lá na praça Santos Dumont. Aprenda a não querer impedir o curso natural das coisas: uma mulher muda para a sua casa, claro que ela vai querer dar o toque dela, sumir com algumas coisas, colocar outras novas, ou coisas pessoais. Era a primeira vez que ela tinha uma casa, digamos, dela. O apartamento era meu, claro, mas eu curtia essa coisa dela encarar como se fosse a nossa casa. Era por aí mesmo, por que não?

Um vaso, um abajur, uma estatueta de bronze assinada. Com a estatueta começava a incursão dela no art déco, que eu, pra falar a verdade, gostava muito mais do que o nouveau. A estatueta me fez lembrar uma estátua que é um dos déco mais puros e bonitos que já vi, que enfeitava um túmulo do cemitério da Consolação, em São Paulo. Depois até achei as fotos do cemitério na década de 80, ficamos vendo juntos, ela feliz, interessada, sentada no meu colo e sempre com uma atenção que não perdia uma palavra, uma piscada de olhos minha. E eu adorava isso. “Gostosa!”. Ela me olhava, entrava em câmera lenta, e sorria de leve, discreta. Nem acho que ela tentava ser sexy não, mas era. Eu falei bem devagar, silabando: “Você é uma gostosa, sabia?”. Ela ficava ainda mais gostosa quando ouvia isso. Depois vinha aquela rotina feminina de validação. “Jura? Você me acha mesmo?”.

O desafio de provar a uma mulher que você chamou de gostosa que ela realmente é gostosa, essa é uma das partes boas da vida. E quando se trata disso, eu sempre faço questão de provar sem deixar nenhuma dúvida razoável.

O dia em que eu não quiser você sem blusa sem vergonha sem pudor sem silêncio sem calcinha sem olhos fechados sem nada sem tudo nesse dia saiba que começou a acabar.

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Nós costumávamos escrever, um para o outro. Quantas e quantas vezes um de nós chegava em casa e encontrava um presente: alguma mensagem, bilhete, carta deixada pelo outro, e, acredite, aquilo tinha muito mais significado do que qualquer outro presente que se imagine. Uma vez ela uniu o intelectual ao sexual de uma forma tão… bem, acho que li o texto várias vezes seguidas. E muitas outras mais depois. Ah, sim, sim, esse vale a pena você ler, para me entender.

Sé,

Eu estava aqui trabalhando e numa determinada hora me dei conta que estava pensando em você. Estava com saudade, estava com tesão. Eu sei e você sabe que eu já fiz isso muitas outras vezes, mas dessa vez decidi (d)escrever, para que você soubesse como foi cada pedaço. Eu estou com aquele jeans escuro, de cintura baixa, eu sei que você sabe qual é. Quando cheguei da rua eu tirei a blusa que estava usando e peguei uma camisa azul tua, que estava pendurada. Acho que foi pra sentir você e o teu cheiro. Sabe quando vem aquela vontade e a gente sente lá embaixo, no meio das pernas, e depois fecha os olhos e aí dá uma respirada fundo, meio que um suspiro, sabe? Primeiro eu abri mais três botões da camisa, e aí eu já podia ver meus seios, sabe, e imagina que eles estavam duros, arrepiados, e de olhar pra eles me veio, sabe, uma segunda onda de tesão, mais forte… aí eu abri o botão e o zíper da calça e consegui ver um pouco da minha xaninha. Agora até ri escrevendo porque sei que você escreveria buceta. Ai. Quanto tesão. Queria você aqui, agora, queria tua boca, queria teu pau. Sabe, quando eu coloquei a mão, ali, dentro da calça, eu senti logo o quanto eu estava molhada e veio a terceira onde de arrepios. Queria você, queria você, queria você aqui. Foi daquele jeito que você falou outro dia, não ter vergonha de dar as mãos, completamente, para o meu corpo. Sé, quando eu gozei eu gritei teu nome e apertei meus seios mais forte, e não parei, não parei, gozei de novo, de novo. Eu só abri mesmo os olhos porque inventei de escrever isso pra você. Foi muito, foi muito foda.

Eu li e reli muitas vezes isso. Mas uma coisa não saia da minha cabeça, um dia eu disse pra ela: “Garota, nossas entrelinhas dão muito mais páginas que as nossas linhas”. Assim.

Geralmente eu digo que não tinha como evitar, mas a verdade mesmo é que eu já não tinha mais nenhuma vontade de evitar. Foi num fim de semana prolongado, algumas coisas estavam menos tensas entre nós, principalmente porque eu não dava mais aulas na faculdade onde ela já praticamente terminava o curso (Milla não era, afinal, aluna do segundo ano; minha matéria era uma DP dela). Ela abriu a mochila e começou a colocar suas coisas em cima daquela banqueta ao lado da cama. Como sempre. Eu diria que ela estava ensaiando aquela fala já há semanas, meses. “Se a gente arrumasse um pouco diferente os armários, dava pra deixar umas roupas minhas”. Ah, que movimento. Finalmente ela teve coragem. Eu gostei, mas não ia ser assim tão de bandeja que ela ia saber disso. Ela estava com umas roupas nas mãos, arrumando, tentou um ar blasé quando deu a sugestão. E ficou vermelha.

Depois de uma mulher te odiando e de uma mulher chorando, certamente essa expressão envergonhada era a próxima da lista das Top Ten. Foi por que eu estava adorando curtir aquela expressão de vergonha e de o que é que eu digo agora que eu não a interrompi. Aliás, nem respondi. Só continuei olhando pra ela, um sorriso mal desenhado no meu rosto, e deixei que acontecesse. Queria ver como ia ser. Mais uma vez ela foi previsível. Claro que eu adoro essa previsibilidade, mas não se esqueça que um pouco de improviso sempre ajuda a dar aquele swing requebrante de quadris semoventes com muito sacolejo e joguinho de cintura e sedução.

Ela gaguejou. “Eu… eu… quer dizer, se você não quiser…” e me olhava procurando a aprovação que não dei “ah, desculpa, esquece, deixa isso pra lá”. Aquellos ojos verdes ficavam ainda mais bonitos molhados. Cheguei perto e botei pilha: “E daí, garota, fala, por que você tá querendo espaço nos armários?” As outras que me perdoem, mas olhos verdes com lágrimas são incomparáveis. “Nada… besteira minha”, e virou… acho que me deu as costas para não me deixar ver as lágrimas. O fato é que eu já queria aquilo, talvez até mais do que ela. Eu a virei pela cintura, ficamos frente a frente.

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Sabe, entre os meus vícios dos últimos anos, até que a Milla era bem saudável. Rolavam as nossas loucuras, sim, mas eu já te disse, era uma relação intelectual. Bom, eu não vou me matar pra te convencer disso, mas é verdade.

Faz assim, vamos estabelecer um critério de avaliação, um filtro. Eu proponho o filtro do pós-orgasmo. Desafio. Quero ver quem é que nunca passou por aquela situação incômoda de gozar e em seguida se perguntar o que é que eu estou fazendo aqui. Hipócritas e mentirosos à parte, quantos homens nunca sentiram essa sensação? E mulheres? Você nunca gozou e percebeu como estava velho e sujo aquele lençol, a parede daquele hotelzinho? Aquilo tudo que você tinha “relativizado” quando estava de pau duro e pedindo pra ela tirar a roupa, nunca? Relativizado? Desculpe, isso é horrível!

Nunca acordou ao lado de alguém e pensou puta que pariu, eu bebi muito? Eu não me orgulho porra nenhuma de ter passado por essas situações, mas se não tivesse passado talvez eu sentisse falta delas. É teu caso, não é não?

Bom, foda-se. O ponto onde eu queria chegar é que com a Milla jamais aconteceu a menor pontinha de arrependimento. Nada. Ao contrário.

Olhar nos olhos depois de foder. Sorrir, beijar. Beijar de novo de manhã, logo que acorda, sem censura. Sem censura beijar também cada pedacinho do corpo dela. E com vontade, muita vontade. E quando acabar toda essa vontade tão animal, tão carnal, ter ainda vontade de ir a uma livraria ou ler uma resenha ou um artigo que você separou pensando nela.

Meu velho, eu gosto de buceta, já te disse. Só que pra você buceta é uma coisa, pra mim é um mundo. Assim.

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“Eu não quero duas ou três roupinhas tuas nas minhas gavetas”. De menininha chorona a tigre em dois segundos de pausa. Não a deixei se desculpar. “Ou você traz todas as roupas ou deixa a calcinha no banquinho mesmo”.

“Porra, eu nunca sei quando você tá me tirando, brincando ou tá bravo… fala sério, Sérgio…”

Não dá pra explicar a Teoria da Relatividade fazendo carinho. Então. A dúvida que ela tinha, bem ao contrário, não era para ser respondida com palavras, precisava de mais que isso. Você acha que sabe o que é um beijo, né, Vini? Esse que você está pensando começa com o contato das bocas. O beijo que eu estou falando começa antes. Começa na falta de palavras que deixou a lacuna. No olhar olhado e no olhar desviado. No pedido de resposta e na vontade de responder. E quando essas bocas se tocam, o beijo acontece como o mais natural e gostoso pretexto para que nenhuma das explicações seja dada, mas que muitas, muitas mais sejam imaginadas. São bocas que chegam junto com corpos, com mãos, com intenções, com desejos.

Desse jeito é que eu dei a resposta. E aquela mulher que eu queria sempre sem calcinha trouxe todas que tinha e guardou no meu armário.

Na segunda-feira ela se mudou pra minha casa.

Eu conheci o professor Sérgio na universidade. Sempre o achei um visionário, um homem com ideias à frente de seu tempo, não obstante muitos de meus colegas de turma o classificassem simplesmente como um desequilibrado.

Ele parecia ter em sua cabeça, muito mais claramente do que eu, o destino do nosso projeto. Principiamos com encontros mensais, nos quais eu ouvia e tomava notas num bloco. Não nos demoramos muito a perceber que necessitávamos de mais encontros e que as notas no bloco eram insuficientes para acompanhar a sua narrativa rápida, desordenada, entrecortada de reminiscências. Logo começamos a gravar as conversas em vídeo (eram muito mais monólogos do que conversas).

Uma das mais completas e compreensíveis explicações que ele havia dado como definição daquele nosso projeto – muito mais dele do que meu – foi aquela do veleiro. Cada vez ficava mais claro para mim o quanto aquele homem gostava de se expressar através de exemplos, histórias, anedotas, metáforas. Muito embora nossa diferença de idade não fosse tão grande – cerca de 12 anos – e eu nem pudesse passar perto de vê-lo como um velho sábio, não nego  que em muitas noites eu voltei para a minha casa pensando em todas aquelas histórias e desejei, de alguma maneira, viver ou ter vivido a vida do professor Sérgio. Ou simplesmente Sérgio, como ele preferia que eu o chamasse.

Ele era uma pessoa intensa, essa talvez seja a melhor maneira de defini-lo. Mergulhava fundo nas discussões, nas relações, em tudo. Nós tínhamos nossos momentos de pausa e, apesar de eu, particularmente, não tomar bebidas alcoólicas, muitas vezes nosso “descanso” era num bar. Não foram poucas as oportunidades em que ele me apresentou a garçons e donos de botecos, sempre se divertindo e repetindo que ele é que parecia carioca e eu parecia paulista.

Ele demonstrava estranhas manias. Por duas vezes lembro-me de nossa conversa ter se estendido para depois da meia-noite. Em ambas as ocasiões um alarme tocou à meia-noite em ponto, ele interrompeu a conversa, pedindo desculpas, e disse que precisava ler o post novo do blog de uma amiga, que sempre publicava àquela hora. Eu nunca objetei nada, é claro.

Milla foi apresentada a mim numa noite qualquer. Ela parecia ser tão intensa quanto ele, mas mais agitada, mais “elétrica”. Eu jamais a teria imaginado fisicamente, se dependesse dele. Eu nunca havia entendido direito o funcionamento dessa dinâmica: ele seria capaz de descrever em mínimos – algumas vezes até desnecessários – detalhes o sexo oral que ele e ela tinham feito, mas dificilmente me deixava ter o quadro completo dela. Não estava escondendo nada. Era só o jeito dele.

É evidente que, àquela altura, eu já estava contagiado com a opinião que ele mesmo tinha sobre ela, por isso não posso assegurar que minha avaliação tenha sido imparcial. Além disso, eu já tinha ouvido tantas histórias que, de alguma forma, eu já conhecia e sentia algo por ela. Eu voltei para casa, naquela noite, com um pouco de vergonha de mim mesmo. Tenho impressão que agi como se fosse uma criança diante daquele homem que sempre achei tão grande e daquela mulher que há muito vivia passeando pelos meus sonhos. Fui tolo, ingênuo.

A câmera não estava ligada, pois nossa conversa do dia já estava encerrada; por isso, eu tomei notas, depois, das minhas impressões sobre ela. Eu nunca fui o melhor com as mulheres, muito pelo contrário, mas olhar e guardar na cabeça era uma coisa que eu sabia fazer bem.

Ela não tinha mais do que um metro e sessenta sem os saltos (saltos não muito altos, nada exagerado). Não tenho muita certeza do quanto eles possam ter percebido meus olhares, mas eu mal controlo meus olhares perante outras mulheres, imagine em relação a uma cujos detalhes mais íntimos já haviam sido relatados a mim. Eu absolutamente não consegui evitar conferir duas coisas sobre as quais ele falou muitas vezes: ela realmente estava sem soutien, não havia dúvidas, e, muito provavelmente, não usava calcinha também. Os seios eram médios, quase grandes. Ele costumava dizer que não precisavam de soutien, que se sustentavam nos vinte e poucos anos dela.

O bumbum dela, bem, era… “cheinho”. Não. Não sei descrever direito, era arrebitadinho, é isso. Ela não tem quadris muito largos, mas tem um corpo bem atraente. Toda atraente. Quanto a estar ou não de calcinha, eu fiquei com essa dúvida por alguns minutos somente. Não demorou muito e ele a abraçou, ficaram os dois de frente para mim, ele por trás dela. Ela tinha cabelos pretos, pelos ombros, um nariz bonito, pequeno (eu sempre reparo nos narizes), e os olhos verdes daqueles bem claros, aqueles que sem chorar você acha que estão chorando, e que, quando choram você quer declarar seu amor, aos pés dela. Quer dizer, eu acho, nunca tive um relacionamento com uma mulher de olhos verdes. Os dois de frente para mim, ele me fitava com aquela mesma expressão de sorriso de quem sabe tudo contra quem não sabe nada. Eu não devo ter escondido o quanto estava sem graça com aquela situação sem palavras, e, além disso, já o conhecia suficientemente bem para saber que analisar as expressões alheias, sem palavras, era a sua especialidade e fascínio.

Foi ele quem retomou e quebrou o silêncio, segurando-a pela cintura junto a ele, como se quisesse mesmo me mostrar que a estava encoxando e exibindo. Não parou por aí. Pela primeira vez eu conhecia, numa cena real, aquele homem que já havia me contado tantas cenas que me passaram como surreais. Ele disse a ela que eu queria ver, que eu estava curioso para saber se ela realmente me obedecia e ia trabalhar sem nada por baixo. Eu estava, é verdade, mas apenas fiquei corado. Não confirmei e nem neguei.

O que foi mais interessante e sórdido é que ele não levantou a saia dela. Podia tê-lo feito, mas não o fez. Simplesmente mandou – e sim, ele mandava, não pedia – que ela levantasse a saia e me mostrasse. Parece que não havia expressão no rosto dela, então. Não estava surpresa, não tinha raiva, não estava submissa e também não parecia sentir prazer com aquilo. Mas o levantar da saia foi delicado, vagaroso, premeditado. E ela não deixou de olhar nos meus olhos o tempo todo, enquanto exibia o corpo nu embaixo da saia. Ela me olhava sem expressão, mas de alguma forma desafiava que eu demonstrasse alguma expressão. Ela levantou aquela saia com a mão esquerda, e, um pouco depois, com a mão direita levantou a blusa e mostrou os seios. Nenhum dos dois parou de olhar para mim.

Meu nome é Marcus Vinícius mas ele sempre me chamava de Vini. Eu não gosto, parece nome de cantor brega, mas nunca disse nada. Muitas pessoas me chamam assim, afinal.

Eu o odiei naquele instante. Se eu fosse o homem que eu queria ser, se eu fosse o homem que ela queria ter, eu teria salvado a princesa das garras do vilão. Quando eu pedi para usar o banheiro, antes de ir embora, talvez tenham pensado em outra coisa, não sei. Bem que ele tinha dito que ia passar do ponto que eu suportava. O fato é que eu vomitei de nojo daquele homem e da maneira como ele tratava aquela mulher. Só que eu não era o cara. O Sérgio é que era o super-herói dela.

capítulo 3: XEQUE-MATE

Publicado: 12 julho 2010 em Uma História Tóxica

Confesso que estava ainda muito pensativo em relação a essa coisa de dar outro nome a ela. Foi uma surpresa o pedido. Pode ser que eu já tenha tido vontade de mudar o nome de uma mulher, no passado, e pode ser até que eu tenha mesmo mudado, mas o certo é que nunca aconteceu “a pedido”. Aliás, aqui entre nós, pedidos não funcionam muito bem comigo, porque sempre que eu ouvir um pedido, souber que é um desejo, terei uma tendência a não realizá-lo, só para não atender os anseios dela. Isso não vale para amigos nem nada, vale só para ela mesmo, para a mulher com quem eu estiver me relacionando.

Viu só a tua cara? É por isso que eu digo que jamais poderia escrever isso que estou te falando. Tava fudido. Imagina só, todo mundo descobrindo que eu só mantenho relações  monogâmicas, afinal. Um escândalo! Mas não tem mistério, meu chapa: ela me (se) entrega tanto, tanto, que não é possível sobrar espaço para me relacionar com mais ninguém. Não, não, não mistura estação, swing é outra coisa. Swing não é relacionamento. Swing é sexo. Se você experimentasse swing ia até achar estranho e pensar que aquelas pessoas são mudas. É assim que acontece, é sexo sem palavras, sexo sem comprometimento. Falar conquista, une, seduz. Ninguém precisa sair seduzido de uma experiência de troca, as pessoas já entraram seduzidas. Querem só sair satisfeitas. Swing é o bandejão da USP: entre e coma, não tem mais bosta nenhuma pra você fazer lá dentro.

Stop. Rewind.

Então. Atender ao pedido dela envolvia uma complexidade que talvez eu nunca tivesse enfrentado. Mulher pede, eu atendo. Cacete, a última vez que eu fiz isso deve ter sido pra passar a jarra de suco em algum almoço. Não ria. A gente se perde diante das incertezas. Por outro lado, que graça teria uma vida só de certezas?

Mas tinha um detalhe que ainda me instigava nessa história.

Dar um nome a ela me tornaria muito dono, muito criador (muito pai também? Não gostei disso). Bem, eu já havia sido responsável pelo nascimento daquela mulher em que ela estava se transformando, por que não aproveitar e batizar minha criatura? Rodei a minha rotina padrão: livraria, comprar alguns dicionários de nomes próprios. Provavelmente eu ia acabar escolhendo pela forma mesmo, mas sempre precisava justificar minhas escolhas com certa pesquisa de conteúdo.

Incrível, olhei pro lado e vi a documentação que o tabelião havia mandado, uma pastinha, com uma frase em destaque: “quem não registra não é dono”. Um lembrete.

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“Você tá… tão carinhoso hoje…”. Falava como se pedisse desculpas por me ver carinhoso. Ela ainda estava bem longe de me entender, e, pensando bem, acho que eu gostava disso. Eu jamais havia dito que não seria carinhoso ou que não gostava daquele contato corporal todo bonzinho mocinho bem educado beijinho na testa dedos correndo pelos cabelos. “Vem, quero te mostrar umas fotos.” Eu não tinha 20 anos quando fiz aquelas fotos. Detalhes arquitetônicos do art noveau em São Paulo. Não era toda hora que eu dividia essas coisas tão minhas, por isso prestar atenção às reações dela era fundamental. Ela foi precisa, adequada, na medida. Se estava fingindo, é todo o fingimento que eu sempre quis. Ela perguntou e ouviu respostas, concentrada, interessada.

Naquele dia, pela primeira vez, ela provou aquela sensação comigo. Iria demorar um bom tempo até que ela tivesse coragem de me contar isso, mas eu percebi ali, na hora. De repente, aquela mulher que se sentia usada e dominada se percebe também protegida. Eu imagino o que ela sentiu. Eu mesmo experimentei aquela onda de energia de cima a baixo, como um arrepio profundo. “Sérgio, eu…”. Tampei a boca dela com meu indicador. “Não, não fale, eu já sei”. Sabia porra nenhuma, mas é preciso manter uma aura de mistério.

Que cara de espanto! Você achava o quê? Que ela tinha sido atraída só pelos tapas e o lance sexual todo? Porra, se ela fosse assim tão fácil de entender pode ter certeza que eu nunca teria me aproximado dela. Uma amiga disse uma vez “os homens me conquistam pela língua”. É, eu também levei pro lado da sacanagem, mas ela completou: “primeiro eles precisam dizer coisas que me conquistem, senão nunca vão usar a língua de outro jeito comigo”. Do caralho. É pra anotar. O recado é o seguinte: caminhoneiro é legal, mas não todo dia.

Olha só essa cena: Salvador, 2006. Eu viajei com mais três amigos. Um deles devia estar mais carente, armou alguma coisa via internet. A mulher foi nos pegar no hotel, e fomos para um restaurante. Depois uma amiga dela nos encontraria por lá. O caso é que essa primeira era biblioteconomista ou algo assim, professora universitária da Federal e terminando um doutorado. Um dos meus amigos meio que desdenhou: “Sabe, eu nunca li um livro na vida”. Ele caprichou no “nunca”. Mentiroso, é administrador de empresas e já leu muito. Mas uma tensão se estabeleceu entre ele e a quase doutora. Ele sustentou a história, seguro, e disse que não lia porque não gostava. Quase brigaram. Quase. Grande filho da puta. Naquela noite ele inventou o que acabamos chamando, entre nós, de cantada caminhoneiro. Ele passou o fim de semana na casa – e na cama – da professora. E, se não me engano, só ele deu aula. Ah, se vai funcionar com você eu não sei. Ele… ele é bom nisso, entende?

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Agora compreendo porque tem tanto Júnior por aí. Nada fácil escolher um nome. Durante o dia eu tinha pensado muito em Carolina, Carol, quando fui ver o significado risquei da minha lista. Voluntariosa não, estou fora. Abri e fechei os livros um monte de vezes. Saco.

Foi bom estar sozinho naquela noite. Uma chance para pensar mais sobre isso. Um incômodo. Não que ela fosse cobrar alguma resposta, eu sei que não iria cobrar tão cedo, mas o fato é que ela me jogou um problema no colo e problema é o tipo da coisa que não me dá tesão. Se não é criancinha ou não me dá tesão, fora do meu colo. Eu fico inquieto. Principalmente quando estou perto da solução mas ainda não cheguei lá. A melhor opção nessas situações é a meditação transcendental. Como eu não entendo porra nenhuma disso, peguei o copo, o gelo, ah, você já sabe, o whisky. E fui pro piano.

Era por volta de meia-noite, eu já tinha escrito uma música, mas nada da resposta. Era assim mesmo. Sentar no piano e tocar o que viesse à cabeça era uma parte do processo. A resposta sempre me aparece quando eu deixo de pensar em onde encontrá-la. Eu nunca antes falei sobre esse meu método de busca de respostas porque alguém pode achar que eu estou querendo dizer que o universo conspira a nosso favor quando nossas energias estão calmas e não estão desesperadas pela solução. E eu não estou dizendo nada disso. Aliás, pra mim esse papo todo não passa é de uma tremenda viadagem. Eu toco, deixo o problema de lado, a saída me surge mais fácil. Se quiser explique com a metafísica, eu explico com Bach, Lennon, Brubeck. É só.

Era Brubeck que eu estava tocando quando veio o estalo. Mas pode chamar de insight, fica mais chiquérrimo.

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Deixei para a sexta-feira. “Tenho uma surpresa pra você, Milla.” Acho que eu estava acostumando mal essa mulher. Ela nem sequer teve medo da surpresa! Estava mais solta, mais à vontade, é verdade. Confiava mais em mim. Confiança, esse é o segredo. Anote isso. “Fala… qual é a surpresa?” Parecia uma menininha. Bem, ela era mesmo uma menininha. “É sobre o teu nome”. O sorriso quase desapareceu, ela tentava disfarçar que aquele era um ponto sensível. Eu sempre achei que era. O jeito de saber como se colocar em certos momentos críticos era uma das coisas que me prendia a ela. Ela não respondeu. Perguntou um e daí, continua, isso é verdade. Mas perguntou lindamente, com os olhos, com um movimento de cabeça, sem palavras. Ela nem tinha palavras. Estava apreensiva.

O fato é que era muito cedo para eu perder alguma jogada. Foi pensando nisso que eu me decidi. Eu iria dar a ela o que ela pediu, mas precisava ter certeza de que ela não sairia feliz, mesmo assim.

“Só dessa vez… eu vou te deixar escolher…”. Às vezes eu viajo que os olhos dela ficam amarelos quando ela vira tigre, como nessa hora. “Escolher o quê?”. Ela foi chegando mais perto, estava com uma camiseta meio justa, uma calcinha preta. “Escolher entre ficar com o seu nome ou começar a usar o nome que escolhi. E presta atenção…” eu já falava meio alto nessa hora “…não vai ser todo dia que eu vou te dar escolhas, assim. Se não gostar, aprenda a não pedir”. Ela só aquiesceu, balançando a cabeça. Estava nervosa. “Fala… o nome…”. Houve uma pausa longa. “Lana. Lana é o nome que escolhi”. Você precisava estar lá pra ver como ela queria me atacar nessa hora, uma delícia a sensação. A sala era só adrenalina. “Filho da puta…” ela entendia o jogo, agora. Nem tentou esconder as lágrimas. “Lana? Lana igual à cadela da casa de Petrópolis?” Eu só balancei a cabeça, concordando. Um dia, muito depois, ela disse que eu fui muito cínico e que nessa hora ela teve vontade de me matar. Nem precisava me dizer, eu percebi na hora.

Uma mulher que chora pode ser um problema sério. A maioria dos homens não sabe o que fazer quando uma mulher chora. Eu prefiro ir me infiltrando mentirosamente na tristeza dela pra ouvir os soluços bem de perto, num abraço. Recomendo.

“O meu nome, eu fico com meu nome…”. Desse jeito. Bem previsível. Xeque-mate, garota.

Muitos devem pensar que eu sou um bêbado trash que arrumou umas aulinhas para dar à noite e que vive num universo paralelo de baratos marijuanos, baratas kafknianas e frustrações emocionais. Que pensem. É bom fazer esse tipo. Quando eu jogo pôquer eu gosto de ser meio Caetano Veloso: que pensem que eu sou um blefador. Ou não. Ou mais ou menos.

Você vai quebrar a cara muitas vezes comigo. Por isso, não precisa ficar adivinhando muito: eu vou contar, pelo menos o que eu achar que você suporta ouvir. E olha que vai ser muito mais do que já contei pra qualquer outra pessoa e, provavelmente vou errar na dose e contar um pouco mais do que você suporta. Passar do ponto é a minha boa ação aos profissionais da mente. Depois te dou uns telefones de algumas psicoterapeutas. A coisa é toda… muito interessante, digamos. Um processo muito interessante.

Eu tenho um amigo que sempre foi gago, nunca conseguiu melhorar, mas tinha uma verdadeira obsessão por comer fonoaudiólogas. Pronto, já estou me perdendo. Não era nada disso.

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Se eu estivesse atrás de reações normais e esperadas eu preencheria um formulário e iria a uma repartição pública. Eu nunca tive o menor arrependimento ou problema em ter mandado ela embora daquele jeito, naquela tarde, depois daquele duelo… excitante. No dia seguinte ela mandou um SMS dizendo a hora em que chegaria na minha casa. Desse jeito. Ela foi pra casa e nada foi comentado sobre o dia anterior. A minha lógica e a lógica desse relacionamento não é necessariamente a lógica dos outros.

Quando eu disse “Some garota. Você já me encheu o saco” eu só estava querendo dizer pra ela sumir porque ela já tinha me enchido o saco. Quem quiser que dê outras interpretações. Pelo menos eu e ela entendemos bem a extensão do meu comentário. Comentário não, ordem. Pedido, pra quem achar mais elegante.

“Me dá outro nome”. Coisa esquisita de se ouvir. Eu fiquei olhando pra ela. Ela entrou em casa, veio pra perto de mim e soltou essa. Na hora eu também não entendi nada. Ela insistiu e repetiu. “Do que você tá falando?” “Do meu nome… do meu nome de puta… eu não gosto dele. Dá um nome pra mim, por favor”. Aquilo era, no mínimo, um pedido incomum. “Eu gosto do teu nome… e gosto de puta também.” Eu ri. Ela não parava de me olhar. “É sério, quero outro nome”.

Vamos resumir, porque esse diálogo foi bem longo. E fascinante. Ela era boa na argumentação e estava odiando o meu sorriso não disfarçado durante a conversa. Lembra do tigre mal domado? Então. “Vou pensar num nome; quando achar um eu te falo”. Agora um tigre mal domado contentinho e envergonhado. Bom, nessa hora ela estava mais pra tigre de sucrilhos mesmo; todo mundo tem seus defeitos.

O que fazer num domingo à tarde com essa mulher tão disponível, tão bonita, tão minha? Era a hora, o dia, o clima perfeito para fazer amor. Rapidamente nos livramos das roupas, e, principalmente, da ideia boba e nunca mencionada de “fazer amor” e partimos para o mais sensato e razoável: foder. Ela ainda chegou a tentar: “Desculpe por ont…”. Tampei a boca dela, tente imaginar como. Ela entendeu.

Eu já percebi que muita gente tem verdadeiro horror a esse verbo: foder. Se não chega a ter horror, pelo menos tem um melindre. Eu reconheço que para a maioria das pessoas a questão é só semântica mesmo, mas para alguns, e não são poucos, é um fator limitante. Pensa bem: fazer amor é bonito, poético, doce, macio. Complete com outros adjetivos morninhos. Canja de galinha também é bom, e poesia do Bilac idem (discorde, por favor). Mas, deus, dai-me empadinhas de boteco e Caeiro, pelo menos de vez em quando. Ainda não me fiz entender? Então é o seguinte: fazer amor, você faz com uma vagina; foder, foder é com a buceta. Escolha aí o que você quer levar pra sua cama (e não me venha com Doritos). Foder é só fazer amor com um pouco mais de sal, pimenta e conhaque. Essa discussão vai longe, mas de qualquer jeito eu já sei que você vai pensar nisso no teu próximo encontro com alguém.

Uma vez eu estava defendendo essa teoria num boteco e uma amiga me falou que eu era um tosco e que fazer amor era muito mais profundo do que foder. “Eu não acho. Eu acho que fazer amor deve ter uns 12 cm de profundidade. Foder tem pelo menos 18”. Ela me mandou tomar no cu, mas depois de um longo debate chegamos a um excelente acordo e quem tomou no cu foi ela. É o que eu chamaria de um incontestável happy end: uma discussão vencida e uma bunda de premiação.

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Eu não sei quanto tempo ela demorou para sair da minha casa ou mesmo se saiu vestida ou não depois que eu a mandei embora. Bom, estou falando de novo sobre aquela tarde. Tanto faz, o importante é que ela entendeu e foi embora. Deu área. Era isso mesmo.

Por que é que eu disse que hesitei? Bom, ela não é uma mulher qualquer, ela não é uma sub qualquer, não é uma escravinha qualquer.

Nem acho que exista nenhum grande segredo na nossa relação. Foi um lance de pele? Os signos? Laços espirituais? Almas gêmeas? Porra nenhuma. Foi uma experiência intelectual, que num determinado momento se desdobra, sem racionalizações ou escalas, para a experiência emocional pura, ilimitada, sem restrições, fronteiras, uiuiuis, mimimis. Do cérebro à genitália em um estalar de dedos: um atalho que muitos passarão a vida toda sem descobrir. Foi assim.

Acho que já está na hora de falar sobre a minha teoria da dominação. Não, nem é minha. Acho que é senso comum, uma pasta de domínio público na grande biblioteca do inconsciente coletivo, algo assim. Acontece que o dominador escraviza, domina, mas ao mesmo tempo se torna escravo de seu domínio, escravo do que ou de quem domina. Dominador e dominado passam então a ser polos de um grande imã que não para de reverter sua polaridade, mantendo a ambos presos na armadilha que um acha que preparou para o outro, quando, na verdade, foi exatamente o contrário, e já não será no momento seguinte. Eterno retorno caos constantemente autorreorganizado.

O dominador oprime o dominado, mas se torna dependente dessa relação de opressão. E todo dependente é, de alguma forma, um dominado. E o objeto da dependência é, de alguma forma, um dominador. Mas é bom que não tenham muita – ou nenhuma – consciência disso. Senão viram observadores de si mesmos, como eu sou grande parte do tempo. Não tente fazer em casa, é coisa para profissionais.

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“No que você tá pensando?” Ela não acreditou muito quando eu disse que era nela. Eu jurei, ela fingiu que acreditou, acho que de qualquer jeito ficou feliz. Felicidade é mesmo feita dessas coisas pequenas, frágeis, não? Bom, eu não discuto felicidade. Meus questionamentos a respeito da felicidade são muito mais concretos: eu queria saber de que cor ela é, qual é o cheiro, o gosto, a textura, o som que ela produz. Faz sentido, não?

“Era mesmo em você que eu tava pensando”. Eu levantei. Pensei que poderia olhar para ela por muito tempo. O corpo nu, branco, o púbis apenas com vestígios de pelos negros, os olhos curiosos e ao mesmo tempo com vergonha. Uma hipótese de sorriso completamente indecisa entre desabrochar ou desaparecer de vez.

“E agora?, fala no que você tá pensando…” o sorriso apareceu, tímido, sem querer virar o centro das atenções. Ela já tinha muita coisa para ser centro de atenção, nem precisava do sorriso, isso é verdade. “Agora, nesse instante, tava pensando em chupar tua buceta”.

Eu já te disse que eu fiz cinema? Já faz um tempo. Então. Tem certas horas em que a vida entra num slow motion automático. Essa era uma. Nenhum detalhe se perde. Ela estava de bruços no instante em que eu respondi, e o sorriso tímido que ela vestia de repente virou um balanço de cabeça e um grande sorriso… não de tesão, de surpresa, acho. Daí tudo começou a acontecer ainda mais lentamente, e ela foi como que rastejando na cama, ainda de bruços, colocou a cabeça no travesseiro, e então começou a se virar e se ajeitar deitada de costas, enquanto suas pernas se dobravam, se abriam e os joelhos subiam, os pés se plantavam na colcha. Eu assisti a esse curta metragem em pé, atento. Só quando já estava pronta, exposta, acomodada é que ela, finalmente, voltou os olhos para os meus. Nós nos olhamos durante uns 120 frames.

Eu comecei com a ponta da língua na virilha esquerda.  Foi assim.

capítulo 1: DUELO

Publicado: 8 julho 2010 em Uma História Tóxica

Outro dia mesmo eu contei pro Caio sobre o tapa e ele ficou com aquela cara de “nossa, tá doido, isso é verdade?”. De vez em quando eu pensava bem sério se estava mesmo sendo maduro e experiente, ou se, no fim das contas, aquela menina era muito mais madura que eu, e só estava é jogando meu jogo. É, isso, isso que você pensou: eu jogando o jogo dela. Fuck y’a.

Se tem uma coisa que eu não suporto é mulher que deixa bater na cara, de boa. Assim, que deixa e dá pinta que gostou.

Whisky, copo longo, gelo… que porra ficar velho, fumar um baseado era bem mais barato.  Barato. Meu barato virou outro.

E nem foi um tapa. Foram muitos. Puta que pariu, será que eu não tenho uma porra de amigo pra contar que bati, que dei na cara dela, e que os dois ficaram é com muito tesão? Eu não suporto ficar longe de mulher que deixa bater na cara.

Deixa não. Deixa é o caralho. Teve muito esforço envolvido nisso, eu me apliquei e dediquei bastante. Eu direcionei todas as minhas energias pra isso. Que papo. Papo de psicólogo-autor-de-autoajuda. Mas bem sucedido, meu chapa. Ela apanha, aparece um brilho naqueles olhinhos, e daí ela fala que sim, que é uma vagabunda sim. Olha, ou você sabe ou você não sabe o que é isso. Não dá pra imaginar não.

Swing… não sei se gosto desse whisky pelo blend ou pelo nome mesmo. Eu prometi um swing a ela, não o whisky, prometi foi o outro, está na moda agora. Garanti que ia rolar, que ela ia experimentar – sei lá se ela nunca experimentou mesmo. Mas isso está ficando confuso, é melhor eu contar do começo. Mas não se anime, eu não vou contar tudo hoje.

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Foi na classe a primeira vez que ela precisou mesmo falar comigo. Abril, maio, por aí. Segundo ano. Aluno de segundo ano é uma merda. Já perdeu a humildade do calouro, agora acha que já é profissa. Tirando os que acreditam piamente que vieram ao mundo com uma nobre missão de tomar vodca e trepar, uns outros – não menos chatos – começam a ler biografia do Zaragoza, quando eu tinha recomendado alguma coisa de Porter. E todos, absolutamente todos, têm pelo menos um blog. Ela também. Mas a Milla é bem diferente. Não é conversa de apaixonado – coisa que eu nem sou, pode ter certeza –, é verdade mesmo.

Eu não sei o que é estar apaixonado. Nunca acontece. Eu me vicio, nunca me apaixono. Vício é foda. Bom, foda é um vício também. Os apaixonados? Eles que procurem as fábricas de chocolate.

Nessa época eu só a conhecia por ver na classe, por alguma pergunta rápida, um boa noite, e… pelo nome. O nome é um detalhe bem mais que engraçado. Se você nunca foi professor, vou te explicar: fazer chamada não é uma chatice. Fazer chamada é uma estranha forma de voyeurismo, meu amigo. Se eu mandasse passar aquela lista pela classe, quando é que eu teria reparado naquele nome, com atenção? Milla Sheila. Não ria, é sério. Ela só podia odiar aquilo. E eu sabia. Na primeira vez, quase a chamei pelo nome inteiro, mas me contive e preferi guardar o segredo só pra mim. É claro que na minha cabeça sempre ficou a ideia de que o pai dela queria abrir um puteiro. Só pode.

Pensando bem, eu devo ao nome, eu devo aos pais dela o primeiro tapa. O whisky ajudou.

“Milla Sheila… sabia que isso é nome de puta?” Estávamos na cama, lembro bem da imagem, da calcinha branca. Eu falei e ri. Ela ficou… bem, ela ficou foi muito puta mesmo. “O quê? O que você falou do meu nome? Repete.” Eu percebi que tinha tocado o ponto sensível. Ficou brava. Mas com os olhos molhados. E levantou da cama quando me desafiou a repetir. Toda vez que me lembro, a cena se passa na minha cabeça como se fosse um duelo de western. Eu também levantei. Ficamos frente a frente. O fato é que tinha chegado a hora da verdade. “Eu disse que teu nome… é nome de puta.” Eu já conhecia a rotina. Já sabia o que uma mulher faria, nessa situação. Foi por isso que dei o tapa antes. E aprenda aí, meu amigo: o primeiro tapa é sempre na cara. E nunca é fraco.

Ela nunca vai ouvir de mim que eu quase hesitei em continuar. Porra, se você a conhecesse você ia entender. Mas eu fui em frente. Joguei a roupa e a bolsa sobre o corpo dela, caído. “Some, garota. Você já me encheu o saco.”

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Desculpe. Eu sempre acabo me enrolando. Nós estávamos no primeiro dia, na aula. Então.

Nem foi exatamente na aula. Foi logo depois. Ela pediu pra falar comigo depois da aula. Eu já sabia o assunto, ela tinha levado um quase zero (é que zero mesmo eu não dou, acho que é muito constrangedor).

“Professor, desculpe, mas é que eu fiquei com um QZ no trabalho…” ela deu uma pausa, mas eu não disse nada, só fiquei olhando nos olhos dela. Ela também não disse nada. Ela sempre é  marcante! “Deixa eu ver seu trabalho”. E ela me estendeu a pasta. Bati o olho, já percebi o que eu tinha assinalado. “Texto tirado da web, Milla, foi isso. Eu avisei.” Foi nessa hora. Eu fico arrepiado de lembrar. Ela continuou quase no mesmo tom que tinha começado, respeitosa, pedinte. Mas os olhos agora eram de fera, de raiva, ela seria capaz de me despedaçar. “É que o texto é meu, professor. O senhor disse que tinha que ser escrito pelo aluno, esse é…”. Uma sutil alteração no tom de voz, mas ainda mansa e submissa. Como um tigre domado. Não muito bem domado, ela mal se controlava. Estava no limite (puta que pariu, como eu adoro o ser humano nesse limite, e eu no controle da situação). Mais uma daquelas malucas que precisam tirar 10 em tudo. “Deixe aqui comigo. Se eu errei, vou rever, pode ficar sossegada, Milla.” Muito ansiosa. Eu quis somente sorrir com simpatia, mas ela queria a resposta rápida. Eu encerrei: “Se quiser me passa um e-mail…” e rabisquei o meu num papel “…que eu te respondo ainda hoje”.

Foi assim. Ela escrevia bem. Aquele texto do trabalho não era nada, era coisa velha. Mas no blog tinha muita coisa boa. O e-mail veio, e eu cheguei a responder sim. Desculpe desculpinhas pelo meu terrível erro irreparável você não merecia isso tome um 10 e fique com meu MSN se precisar me contatar estou sempre online e à disposição pra uma gostosa com um olhar que nem o teu.

Ahahaha… o mundo virtual era meu, ela ainda não sabia disso.

“desculpe se eu fui muito… ahmm… incisiva hj, profi”

“n foi não, n se preocupa, Milla”

Foi só o começo do papo. Que depois esquentou bem. Site da universidade > área privativa > senha de coordenador >busca > dados do aluno. Achei.

“onde vc qr chegar, profi? Olha só o q nós tamos falando, eu…”

“hum”

“…”

“eu tb to, Milla”

“…”

“vem pra cá… dorme comigo hj…”

Eu sei, era all-in. Mas eu estava seguro, era o meu jogo, no meu território. (Ou não?)

“eu ir prai agora… aiii para… doido”

Qualquer hora eu explico o exato significado de uma mulher dizer “doido” em determinadas horas; e se você não sabe, é por isso que sua vida anda tão morninha.

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A história é assim: ela estava com tesão, eu também. O endereço dela eu já tinha conseguido no site. Mandei um táxi esperar na porta da casa dela. Quando ela duvidou e olhou pela janela, a verdade é que ela já estava entregue faz tempo. Foi assim. A conversa na classe foi às 10. Às 2 da manhã ela chegou na minha casa.

O que é que você diria, nessa hora, pra uma mulher com uns 20 anos menos que você, tua aluna, chegando na tua casa às 2? Uma que você mal conhecia 4 horas antes.

Bom, comunicação é o meu negócio. Mulher é só hobby. Velho, se você pensou em abrir a boca e dizer uma puta de uma palavra, você se fodeu. Que bom que ela também sabia disso: nossas primeiras palavras foram ditas mais de meia hora depois.

– Foi um eu te amo?

Buuuuuuuuu. Acorda. Que mané eu te amo? E isso lá é coisa de se dizer pra uma mulher? Foi um sussurro: “vira de quatro, sua vadia”, com mordidinha na orelha.

Se liga.