capítulo 3: XEQUE-MATE

Publicado: 12 julho 2010 em Uma História Tóxica

Confesso que estava ainda muito pensativo em relação a essa coisa de dar outro nome a ela. Foi uma surpresa o pedido. Pode ser que eu já tenha tido vontade de mudar o nome de uma mulher, no passado, e pode ser até que eu tenha mesmo mudado, mas o certo é que nunca aconteceu “a pedido”. Aliás, aqui entre nós, pedidos não funcionam muito bem comigo, porque sempre que eu ouvir um pedido, souber que é um desejo, terei uma tendência a não realizá-lo, só para não atender os anseios dela. Isso não vale para amigos nem nada, vale só para ela mesmo, para a mulher com quem eu estiver me relacionando.

Viu só a tua cara? É por isso que eu digo que jamais poderia escrever isso que estou te falando. Tava fudido. Imagina só, todo mundo descobrindo que eu só mantenho relações  monogâmicas, afinal. Um escândalo! Mas não tem mistério, meu chapa: ela me (se) entrega tanto, tanto, que não é possível sobrar espaço para me relacionar com mais ninguém. Não, não, não mistura estação, swing é outra coisa. Swing não é relacionamento. Swing é sexo. Se você experimentasse swing ia até achar estranho e pensar que aquelas pessoas são mudas. É assim que acontece, é sexo sem palavras, sexo sem comprometimento. Falar conquista, une, seduz. Ninguém precisa sair seduzido de uma experiência de troca, as pessoas já entraram seduzidas. Querem só sair satisfeitas. Swing é o bandejão da USP: entre e coma, não tem mais bosta nenhuma pra você fazer lá dentro.

Stop. Rewind.

Então. Atender ao pedido dela envolvia uma complexidade que talvez eu nunca tivesse enfrentado. Mulher pede, eu atendo. Cacete, a última vez que eu fiz isso deve ter sido pra passar a jarra de suco em algum almoço. Não ria. A gente se perde diante das incertezas. Por outro lado, que graça teria uma vida só de certezas?

Mas tinha um detalhe que ainda me instigava nessa história.

Dar um nome a ela me tornaria muito dono, muito criador (muito pai também? Não gostei disso). Bem, eu já havia sido responsável pelo nascimento daquela mulher em que ela estava se transformando, por que não aproveitar e batizar minha criatura? Rodei a minha rotina padrão: livraria, comprar alguns dicionários de nomes próprios. Provavelmente eu ia acabar escolhendo pela forma mesmo, mas sempre precisava justificar minhas escolhas com certa pesquisa de conteúdo.

Incrível, olhei pro lado e vi a documentação que o tabelião havia mandado, uma pastinha, com uma frase em destaque: “quem não registra não é dono”. Um lembrete.

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“Você tá… tão carinhoso hoje…”. Falava como se pedisse desculpas por me ver carinhoso. Ela ainda estava bem longe de me entender, e, pensando bem, acho que eu gostava disso. Eu jamais havia dito que não seria carinhoso ou que não gostava daquele contato corporal todo bonzinho mocinho bem educado beijinho na testa dedos correndo pelos cabelos. “Vem, quero te mostrar umas fotos.” Eu não tinha 20 anos quando fiz aquelas fotos. Detalhes arquitetônicos do art noveau em São Paulo. Não era toda hora que eu dividia essas coisas tão minhas, por isso prestar atenção às reações dela era fundamental. Ela foi precisa, adequada, na medida. Se estava fingindo, é todo o fingimento que eu sempre quis. Ela perguntou e ouviu respostas, concentrada, interessada.

Naquele dia, pela primeira vez, ela provou aquela sensação comigo. Iria demorar um bom tempo até que ela tivesse coragem de me contar isso, mas eu percebi ali, na hora. De repente, aquela mulher que se sentia usada e dominada se percebe também protegida. Eu imagino o que ela sentiu. Eu mesmo experimentei aquela onda de energia de cima a baixo, como um arrepio profundo. “Sérgio, eu…”. Tampei a boca dela com meu indicador. “Não, não fale, eu já sei”. Sabia porra nenhuma, mas é preciso manter uma aura de mistério.

Que cara de espanto! Você achava o quê? Que ela tinha sido atraída só pelos tapas e o lance sexual todo? Porra, se ela fosse assim tão fácil de entender pode ter certeza que eu nunca teria me aproximado dela. Uma amiga disse uma vez “os homens me conquistam pela língua”. É, eu também levei pro lado da sacanagem, mas ela completou: “primeiro eles precisam dizer coisas que me conquistem, senão nunca vão usar a língua de outro jeito comigo”. Do caralho. É pra anotar. O recado é o seguinte: caminhoneiro é legal, mas não todo dia.

Olha só essa cena: Salvador, 2006. Eu viajei com mais três amigos. Um deles devia estar mais carente, armou alguma coisa via internet. A mulher foi nos pegar no hotel, e fomos para um restaurante. Depois uma amiga dela nos encontraria por lá. O caso é que essa primeira era biblioteconomista ou algo assim, professora universitária da Federal e terminando um doutorado. Um dos meus amigos meio que desdenhou: “Sabe, eu nunca li um livro na vida”. Ele caprichou no “nunca”. Mentiroso, é administrador de empresas e já leu muito. Mas uma tensão se estabeleceu entre ele e a quase doutora. Ele sustentou a história, seguro, e disse que não lia porque não gostava. Quase brigaram. Quase. Grande filho da puta. Naquela noite ele inventou o que acabamos chamando, entre nós, de cantada caminhoneiro. Ele passou o fim de semana na casa – e na cama – da professora. E, se não me engano, só ele deu aula. Ah, se vai funcionar com você eu não sei. Ele… ele é bom nisso, entende?

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Agora compreendo porque tem tanto Júnior por aí. Nada fácil escolher um nome. Durante o dia eu tinha pensado muito em Carolina, Carol, quando fui ver o significado risquei da minha lista. Voluntariosa não, estou fora. Abri e fechei os livros um monte de vezes. Saco.

Foi bom estar sozinho naquela noite. Uma chance para pensar mais sobre isso. Um incômodo. Não que ela fosse cobrar alguma resposta, eu sei que não iria cobrar tão cedo, mas o fato é que ela me jogou um problema no colo e problema é o tipo da coisa que não me dá tesão. Se não é criancinha ou não me dá tesão, fora do meu colo. Eu fico inquieto. Principalmente quando estou perto da solução mas ainda não cheguei lá. A melhor opção nessas situações é a meditação transcendental. Como eu não entendo porra nenhuma disso, peguei o copo, o gelo, ah, você já sabe, o whisky. E fui pro piano.

Era por volta de meia-noite, eu já tinha escrito uma música, mas nada da resposta. Era assim mesmo. Sentar no piano e tocar o que viesse à cabeça era uma parte do processo. A resposta sempre me aparece quando eu deixo de pensar em onde encontrá-la. Eu nunca antes falei sobre esse meu método de busca de respostas porque alguém pode achar que eu estou querendo dizer que o universo conspira a nosso favor quando nossas energias estão calmas e não estão desesperadas pela solução. E eu não estou dizendo nada disso. Aliás, pra mim esse papo todo não passa é de uma tremenda viadagem. Eu toco, deixo o problema de lado, a saída me surge mais fácil. Se quiser explique com a metafísica, eu explico com Bach, Lennon, Brubeck. É só.

Era Brubeck que eu estava tocando quando veio o estalo. Mas pode chamar de insight, fica mais chiquérrimo.

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Deixei para a sexta-feira. “Tenho uma surpresa pra você, Milla.” Acho que eu estava acostumando mal essa mulher. Ela nem sequer teve medo da surpresa! Estava mais solta, mais à vontade, é verdade. Confiava mais em mim. Confiança, esse é o segredo. Anote isso. “Fala… qual é a surpresa?” Parecia uma menininha. Bem, ela era mesmo uma menininha. “É sobre o teu nome”. O sorriso quase desapareceu, ela tentava disfarçar que aquele era um ponto sensível. Eu sempre achei que era. O jeito de saber como se colocar em certos momentos críticos era uma das coisas que me prendia a ela. Ela não respondeu. Perguntou um e daí, continua, isso é verdade. Mas perguntou lindamente, com os olhos, com um movimento de cabeça, sem palavras. Ela nem tinha palavras. Estava apreensiva.

O fato é que era muito cedo para eu perder alguma jogada. Foi pensando nisso que eu me decidi. Eu iria dar a ela o que ela pediu, mas precisava ter certeza de que ela não sairia feliz, mesmo assim.

“Só dessa vez… eu vou te deixar escolher…”. Às vezes eu viajo que os olhos dela ficam amarelos quando ela vira tigre, como nessa hora. “Escolher o quê?”. Ela foi chegando mais perto, estava com uma camiseta meio justa, uma calcinha preta. “Escolher entre ficar com o seu nome ou começar a usar o nome que escolhi. E presta atenção…” eu já falava meio alto nessa hora “…não vai ser todo dia que eu vou te dar escolhas, assim. Se não gostar, aprenda a não pedir”. Ela só aquiesceu, balançando a cabeça. Estava nervosa. “Fala… o nome…”. Houve uma pausa longa. “Lana. Lana é o nome que escolhi”. Você precisava estar lá pra ver como ela queria me atacar nessa hora, uma delícia a sensação. A sala era só adrenalina. “Filho da puta…” ela entendia o jogo, agora. Nem tentou esconder as lágrimas. “Lana? Lana igual à cadela da casa de Petrópolis?” Eu só balancei a cabeça, concordando. Um dia, muito depois, ela disse que eu fui muito cínico e que nessa hora ela teve vontade de me matar. Nem precisava me dizer, eu percebi na hora.

Uma mulher que chora pode ser um problema sério. A maioria dos homens não sabe o que fazer quando uma mulher chora. Eu prefiro ir me infiltrando mentirosamente na tristeza dela pra ouvir os soluços bem de perto, num abraço. Recomendo.

“O meu nome, eu fico com meu nome…”. Desse jeito. Bem previsível. Xeque-mate, garota.

comentários
  1. gisellezamboni disse:

    Bárbaro,

    simplesmente bárbaro!

    adorando te ler, Edu…vc é genial, caramba!

    Beijos,

    Gi

  2. Luciene disse:

    Muito legal ler texto que escancara a real do ser humano, sem babaquice, nu e cru.
    E você tá muito certo “caminhoneiro é legal, mas não todo dia”.

    Parabéns!

  3. Fabi disse:

    Eu quis viver essa história. Xeque-mate. Sei que você vai entender o que isso quer dizer…

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